quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A História da Universidade de Brasília será incompleta omitindo a significativa presença de Heron de Alencar na formulação da mesma.


Frank Svensson


O projeto da Universidade de Brasília é obra de muitos, mas quando do impasse de configurá-la arquitetonicamente foi Heron de Alencar o principal assessor do arquiteto Oscar Niemeyer para tanto.  Arquitetura não foi limitada a ser uma ação à posteriori de uma programação à priori.  Com o projeto original da UnB inaugurou-se um trabalho de concepção conjunta programa/arquitetura. Nunca no Brasil havia se buscado com tamanho empenho o conhecimento do imprevisível em matéria de uma universidade que se queria parâmetro para uma Reforma Universitária no país.



O professor Heron de Alencar (em cima) leciona mo Institute de Recherches de Pedagogie et Development - 
  Sorbonne, Paris. 1964.

Desastroso foi esse enfoque haver sido impedido de ser acompanhado por uma continua avaliação das implicações de sua aplicação, configurando um processo de registro de resultados e de participação dos usuários da UnB numa continuada e participativa projetação arquitetônica.

Os instrumentos para tanto foram previstos: Institutos em correspondência às grandes áreas do conhecimento e da profissionalização, interdisciplinaridade, interação teoria/prática, conselhos inter-profissionais e acadêmicos, uma dinâmica de grupos de trabalho em substituição à esclerosada departamentalização da antiga universidade, principio de decisões por frente-ampla etc. etc.

O pensamento dialético caracterizou os propósitos e as atuações dos primórdios da UnB, mas os anos de chumbo escancararam as portas da universidade à departamentalização e ao individualismo acadêmico.

Urge resgatar a história desses propósitos iniciais e com isso também a biografia de quem foi Heron de Alencar um intelectual orgânico e por isso mesmo discreto e cauteloso ante as crescentes ameaças ao progresso de nosso país.  Foi forçado a exílio e faleceu em 1972 sem ter sido anistiado.

Tomo a liberdade de anexar a seguir o necrológio que Oscar Niemeyer então também em exílio escreveu sobre o irmão Heron ...   



O IRMÃO HERON
Oscar Niemeyer
(Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 jan. 1972.)


 Paris -  Recebo do Rio a notícia da morte de nosso querido amigo Heron de Alencar e sinto-me na obrigação de lembrar o grande amigo que se vai, depois de uma vida de idealismo, decepções e esperanças.

Conheci Heron em Brasília, quando organizávamos a Universidade do Distrito Federal.  Juntos colaboramos nessa obra esplendida que marcou um momento decisivo do ensino no nosso país, quebrando velhas rotinas, preconceitos e normas superadas; abrindo para a Universidade um campo novo atualizado e flexível, capaz de atender todas as solicitações da vida brasileira.

Recordo seu entusiasmo e convicção com que lutava pelas reformas indispensáveis, a clareza com que definia seus pontos-de-vista, baseados em muitos anos de estudo e saber. E o fazia dentro de uma linha política progressista, visando a grandeza de nossa pátria, sua independência econômica e política. Infelizmente a incompreensão não permitiu o diálogo indispensável e, pouco a pouco, seu entusiasmo transformou-se em desesperança e amargura obrigando-o – com cerca de 200 professores – a abandonar a Universidade de Brasília; levando-o, mais tarde, para o exterior para longe dos amigos e dos problemas brasileiros que o absorveram e apaixonaram a vida inteira.

Durante anos Heron permaneceu fora do Brasil, mas foi em Paris, onde já atuara lecionando na Sorbonne.  Que se instalou definitivamente dirigindo o no IRFED, instituto criado pelo padre Debret, instituto de pedagogia e desenvolvimento.

Perdera-o de vista por algum tempo, mas um dia o trabalho que nos aproximara em Brasília voltou a nos unir no exterior. Era outra vez o ensino que nos convocava; a Universidade de Constantine na Argélia. E a ela nos dedicamos com o maior empenho e amizade.

Tratava-se de um país como o nosso, em vias de desenvolvimento – sujeito também a pressões externas, mas em plena evolução social, consciente de seu papel no Terceiro Mundo, mundo que cresce e se liberta como uma imposição histórica.

Tudo isso deu às nossas tarefas maior relevância.  Levávamos para o estrangeiro um pouco da nossa cultura, dávamos ao estudante argelino que não nos permitiam dar ao nosso irmão do Brasil.

Lembro como iniciamos esse novo período de trabalho e do dia que procurei Heron para elaborar o programa da Universidade de Constantine já iniciada.  Expliquei-lhe nessa ocasião meu projeto, solução radical que idealizara em 1964 para a Universidade de Acra, reduzindo o campus universitário a sete edifícios substituindo todos os prédios das faculdades por somente dois blocos: o bloco de classes, destinado a aulas e anfi-teatro e o de ciências destinado aos laboratórios. Encareci ao meu amigo as razões da solução adotada: terreno preservado, eliminação de ruas, redução de blocos, distancias, etc.  

Contei-lhe como a elaborara sem um programa definido, baseado apenas na minha experiência em Brasília, na minha intuição de arquiteto, na explicação fácil e lógica, para mim irrefutável, que a ideia oferecia.  E fiquei satisfeito vendo-o concordar entusiasmado com o texto  que eu redigira nas vésperas de se iniciarem as obras, para atender dúvidas que surgiam.

A partir desse instante Heron organizou sua equipe: Luis Hildebrando Pereira da Silva, Euvaldo Matos, e Ubirajara de Brito. E em pouco tempo apresentava o programa da Universidade, ratificando meu projeto e a obra em andamento criando a universidade flexível e integrada que sempre imaginara. E tal foi o nível da sua colaboração que o Ministro do Ensino Superior, Benyahia, o convidou para atuar na reforma do ensino  Recordo om satisfação essa extensa faixa de trabalho e os seminários internacionais realizados em Argel, nos quais Heron se impunha com o peso do seu saber, do seu raciocínio, e da sua posição política atualizada.

E o seu campo de ação multiplicou-se.  Juntos projetamos mais duas universidades: a Universidade Científica de Argel, e com Darci Ribeiro, a Universidade de Ciências Humanas, também em Argel.

Como nos velhos tempos de Brasília, os problemas do ensino o apaixonaram novamente e a eles Heron dedicou-se com a mesma perseverança, o mesmo idealismo.  Recordo o dia em que, já enfermo, com o braço paralisado, o encontramos a redigir com a mão esquerda um projeto de lei que Benyahia solicitara.  Que entusiasmo! Que exemplo nos dava o querido amigo!

E foi com tristeza que acompanhamos diariamente, durante meses, a evolução da sua doença, vendo-o superar, generoso, suas íntimas suspeitas para nos dizer sorrindo: “desta vez ainda não me levam”.

Infelizmente seu destino estava traçado e um dia o nosso amigo seguiu para o Rio, sua última esperança.

Pela primeira vez, no aeroporto de Orly, o nosso irmão deixou transparecer emocionado seu pessimismo. Receava não mais nos ver, e nós, conscientes de tudo, sentíamos arrasados, que dele nos separávamos para sempre. Perturbado fiquei a vê-lo de longe, na cadeira de rodas que o levou ao ponto de embarque. E o triste mundo de Sartre – injusto e absurdo –envolveu-me mais uma vez com seu pessimismo doloroso.

Contam-me do Rio seus dias derradeiros, recostado junto a janela que abre sobre o parque da Casa de Saúde Dr. Éiras, onde se internara.  Olhava com tristeza as árvores e os pássaros como a se despedir da Natureza que lhe fugia para sempre. Despedia-se da sua terra querida. Terra que soubera amar e compreender.

Integra-se o velho companheiro no seu universo, universo que tanto o atraía com seus mistérios e grandeza.
   
   

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